terça-feira, 27 de abril de 2010

Os Caracóis (reedição)

......................... Agora que o calor parece que está para ficar, os caracóis vão começar a aparecer, primeiro timidamente e com qualidade apenas sofrível, depois os excelentes exemplares marroquinos e do Algarve que, infelizmente, raramente chegam ao retalho.
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Desde que, já há mais de dois anos publiquei este artigo sobre caracóis no Comidas Caseiras, que este tem servido como base para inúmeras intervenções sobre o tema e tornou-se, desculpem-me a imodéstia, um texto de referência sobre a confecção dos pequenos caracóis do nosso contentamento.
Assim, correspondo agora a muitos pedidos que leitores me têm dirigido e publico-o de novo, com poucas alterações ao que em Abril de 2008 tinha dito:
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Os Caracóis

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Para fazer bons caracóis há que conhecê-los e compreendê-los primeiro.
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À sua volta existe uma espessa barreira de ignorância e de mitos que, em última análise, comprometem a obtenção do resultado desejado: um magnífico e portuguesíssimo prato de caracóis.
Um prato de caracóis perfeito, não é obtido por qualquer segredo bem guardado ou ingrediente fabuloso, mas tão só por uma sucessão de passos bem definidos.
Fazer caracóis permite uma enorme latitude de criatividade e variação mas, nos passos essenciais básicos qualquer improviso é o desastre.
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Foi pela observação atenta de mestres na arte de fazer os mais espantosos caracóis, na tentativa e erro, no estudo da fisiologia e vida do simpático gastrópode, que compreendi finalmente quais os preceitos que fazem caracóis tão diferentes como os que se comem em Évora, Milfontes, no Rei dos Caracóis do Carvalhal, pela mão única de D. Luísa, ou ainda os de D. Manuela, que comanda os sabores da cozinha da Toca dos Caracóis, na Travessa da Boa-Hora, em Lisboa,
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serem todos eles, cada um à sua maneira, verdadeiros monumentos gastronómicos.
São esses preceitos que enumerarei em seguida e aplicam-se a diversas sub-espécies de Helix, que são designados vulgarmente por caracol pequeno.
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1º - Escolha – É um ponto essencial. O caracol tem uma vida activa desde as primeira chuvas até ao princípio do Verão, dedicando-se à reprodução, crescimento do corpo e da casca, etc. o que o mantém magro e imprestável para consumo.
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Quando a água começa a escassear o caracol faz reservas de músculo e gordura, suspende o crescimento da casca e a ingestão de pedras para esse fim e prepara-se para ficar de 2 a 4 meses recolhido na casca que entretanto fecha com um opérculo estanque.
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É essa a altura ideal para ser consumido, pois está gordo e limpo de pedra.
Quando adquirir caracóis prefira sempre os que se apresentam secos, limpos e recolhidos na casca, melhor ainda se estiver com a casca ainda fechada pelo opérculo, garantia de um animal excelente.
Rejeite caracóis que estejam total ou parcialmente fora da casca ou com a casca suja de excrementos, sinal que já apanharam humidade e já ingeriram excrementos uns dos outros e até pedaços partidos de casca.
Aqui, as coisas funcionam ao contrário: quanto mais “morto” parece, melhor. ( deve sempre cheirar os caracóis, rejeitando todos os tiverem cheiro desagradável ou pútrido)
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2º - Lavagem – Deve lavar os caracóis cerca de duas horas antes da hora prevista para o petisco (se forem animais operculados, fechados, dê mais uma hora).
Nesta fase, a ignorância sobre a fisiologia do bicho, provoca os mais delirantes disparates, muitos deles publicados por aí.
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Lavar os caracóis é, exactamente, lavar a casca por fora.
É tão possível lavar o interior de um caracol com água como um ser humano lavar os pulmões ou os intestinos quando toma duche!
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Provocar a emissão de muco queimando o animal com sal, não limpa nada; o muco é segregado na altura da agressão e essa secreção é feita à custa das reservas de energia e humidade do corpo, portanto desgraçando a qualidade que até podia ter até ali..

Bom, lave os caracóis em águas limpas até verificar que já não sai sujidade. Se o caracol estiver seco, bastam 3 a 5 passagens.
Na última passagem, passe os caracóis para uma panela, cubra-os de água, tape bem e deixe em repouso por 30 minutos.
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3º - Morte – Após os 30 minutos, ponha a panela no bico mais pequeno que o fogão tiver e acenda o lume no mínimo. Quanto mais lento for o aquecimento, mais saídos e esticados ficam os caracóis.
Se esta operação é bem feita, o consumo dispensa até o uso de palito ou alfinete.
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Deve assegurar que demore pelo menos 30 minutos desde o início até ao momento em que morrem, cerca dos 65ºC.
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4º - Tempero – Assim que estiverem mortos, o que se vê bem, tempere com tudo o que quiser, excepto sal, passe para um bico grande e levante o lume.
Quando começa a ferver, forma-se uma espuma de lado que vai crescendo como leite a subir. Vigie, quando a espuma estiver quase a transbordar, apague o lume, lance uma colher de sopa de vinagre, junte então o sal, tape e deixe ficar mais 30 minutos tapados antes de servir.
Quanto aos temperos, eu gosto de sabores simples e definidos. Por isso uso apenas, orégãos, alho, azeite e sal. Por vezes uma malagueta para “apimentar” o resultado.
Mas há muitas variantes possíveis, por vezes muito boas: juntar refogados diversos feitos à parte, com ou sem chouriço, presunto, caldos Knorr, etc

Comer caracóis é algo de pessoal. Como indiquei, se a confecção tiver sido impecável o bicho está tão saído da casca que pode ser puxado com a boca, e com vantagem pois virá assim temperado pelo molho onde estava imerso.
Gosto, no entanto de utilizar um alfinete em vez do palito que, por motivos higiénicos , substituíram as tradicionais rolhas com alfinetes espetados de há uma década atrás. Levo por isso o meu alfinete pessoal quando os como fora de casa e chamo a atenção para o modo como se deve retirar o animal da casca, de modo a que saia inteiro e não, como acontece se o espetar e puxar a direito, deixando dentro da casca toda a parte enrolada, quase meio corpo.

Pegue assim no caracol e espete o palito ou alfinete do modo como se vê na foto.
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Depois, imprima ao alfinete um movimento rotativo como se continuasse a desenhar a espiral natural que é a casca do caracol, que assim se desenrola sem atritos e sai completo e magnífico.
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8 comentários:

Maria disse...

hummm....mazinho isso nao e faz,que saudades....

antónio disse...

Luis, sem que os caracóis são um petisco divinal. Cá em casa todos gostamos muito e como em alguns onde se comem temos apanhado alguns "barretes", confecionamos algumas vezes. Faço tal como o Luis só com uma pequena diferença que um vizinho me ensinou.É a água primeira onde eles morrem deitar fora com a espuma e depois temperar na segunda água. No entanto como todos as comidas que experimentei do blog do Luis foram tão boas, vou fazer uns caracóis tal como descreve.

Um abraço
António C. Antunes

Luís Pontes disse...

António,
Conheço a técnica, experimentei-a há anos e abandonei-a porque retira a untuosidade do líquido final, que eu adoro beber da própria casca...

cupido disse...

Apesar de não ser um grande apreciador de caracóis, tenho que te louvar pelo cuidado e rigor do texto. Realmente, ainda mais interessante do que partilhar coisas que se vão ensaiando na cozinha, é esta partilha de preceitos para bem executar coisas simples.

diogo disse...

vou deixar aqui qq coisa também ; moro no algarve e não gosto por aí além de caracóis , mas segundo o conhecimento de um amigo , os ditos caracóis aqui da zona , até de onde são apanhados tem importância .
esse meu amigo diz que os bichos apanhados das árvores são muito melhores que os apanhados do chão , em cima de certas ervas .diz ele que não amargam . ele lá sabe , eu como disse , nem sou apreciador e muito menos conhecedor

anna disse...

Adorei esta aula de revisão sobre os caracóis.
Não fazia ideia de que «quanto mais morto parece melhor»;tenho dificuldade em realizar bem a operação de cozer os bichos porque me dá pena deles e tenho a tentação de subir a temperatura para ser mais rápido...
Mas tenho de confessar que sou grande fã!!!
Beijinhos.

António Bettencourt disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
LMartins disse...

@Diogo - Se puderem experimentem caracóis apanhados em figueiras...